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Publicado em Abril 27, 2020

Vamos falar de saudade? Textos da aula nº1 do Workshop Online de Escrita para Blogues

Workshop de Escrita

10 – NO PORTA-BAGAGENS ELA TRAZ COMIDA E AMOR

Estávamos no quarto dia do ano de 2020 e no nosso penúltimo dia em São Tomé e Príncipe. Queríamos apanhar sol e gravar melhor nas nossas memórias as paisagens verdes selvagens a encontrarem o mar azul claro daquela ilha. Fomos até à Praia Micondo, onde estivemos uns dias antes, mas, desta vez, ao invés da praia deserta que anteriormente encontrámos, deparámo-nos com um festival de comida, de música e de dança. Mas o que se estava ali a passar? Pensámos nós. Não haveria forma de saber, a não ser a interação, ou com os bailarinos, ou com os audazes devoradores de comida que estavam à nossa frente. Na verdade, não tivemos de escolher porque fomos imediatamente abordados por aqueles que estavam ao redor das mesas improvisadas nas pick-ups. Eles é que nos escolheram a nós. Aperceberam-se que estávamos curiosos e vieram ter connosco. Foi aí que conhecemos a D. Hortência.

A D. Hortência parecia ser uma senhora dos seus sessenta e poucos anos, com o cabelo grisalho e, logo pelos primeiros segundos de conversa, percebemos que ela era uma hábil integradora de pessoas. Assim que nós perguntámos onde, naquelas bandas, poderíamos arranjar almoço, ela, em pouco segundos, colocou-nos à frente dois pratos de comida. Explicou-nos que era comida caseira, feita pela sua família e era típica de São Tomé e Príncipe. A comida era fubá de milho com moqueca de peixe e, de acordo com os preceitos da ilha, deve ser comida à mão. Percebemos, desde logo, que a D. Hortência não era uma pessoa de ouvir um “Não” e, assim, aceitámos com carinho a comida que nos estava a oferecer. Aquele foi, para mim, um momento muito inspirador, onde três desconhecidos daquela gente estavam ali a consumir a sua comida, a sua bebida, as suas cadeiras, a sua música e estavam também a consumir um bem precioso, a sua amizade, num momento tão privado como era aquele que eles estavam a celebrar. Contaram-nos entretanto que, todos os anos, a família se juntava para celebrar o aniversário do falecimento de um avô comum a todos. No final, não nos deixaram sequer lavar a loiça em sinal do nosso agradecimento.

Aquele dia na Praia Micondo ficou gravado na minha memória como um dia excepcional em São Tomé e Príncipe e, na verdade, na vida. Ali, naquele pequeno paraíso, o mundo conseguiu reinventar-se e mostrou-me que pessoas que até podem ter pouco, são capazes de partilhar e de se entregar de forma intensa. Não quiseram nada em troca, só um bocadinho do nosso tempo e da nossa amizade. A D. Hortência e os seus primos, os meninos com quem brincámos, o Kito, que era o guarda da praia e a quem dei o meu livro “1984”, deixaram em mim um pedaço deles e, por isso, eu sinto muitas saudades. Ali existiu o melhor do mundo e, quando assim é, só posso pedir que mais dias como aquele se repitam na minha vida.

Autor: AMF

11 – MEMÓRIA OLFACTIVA (A MINHA AROMATERAPIA)

Todas as previsões para 2020 saíram furadas. É um facto. Fechados em casa, ou na frente da batalha contra uma pandemia que ainda mal conhecemos, é difícil qualquer tipo de projecção para o futuro, ou na verdade mesmo para daqui a alguns dias. Continuamos confinados, portanto.

Em tempos normais, não há nada para mim mais catártico do que certas memórias olfactivas, que me desencadeiam como uma espécie de viagem, e me levam para muito longe – no espaço e no tempo. E numa altura difícil como esta que vivemos hoje, esses estímulos podem ser como uma âncora para o que já foi e para o que já vivemos, de forma a nos podermos tentar projectar (quiçá reinventar?) no que aí vem.

Mas o problema é que, confinado às minhas quatro paredes, dificilmente consigo desencantar os gatilhos olfactivos de que preciso para fazer essa catarse. Um dos caminhos mais rápido de volta a uma praia paradisíaca no Algarve ou em Cabo Verde, é quando voltamos aos cremes solares. Mas também é um cliché fácil, usado tantas vezes, e não me está a ajudar assim a conseguir evadir-me.

Depois, é Primavera, cheira a flores, cheira a pólen. Podia transportar-me de volta às primeiras saídas na natureza e aos primeiros piqueniques do ano. Mas pensando bem, acho que não é a Primavera que me traz das memórias mais felizes – mais memórias de alergias que outra coisa. E pensar em doenças não é o melhor nesta altura.

Ou então a grande actividade da nossa nova vida confinada, cozinhar! E o reconforto de um bom bolo acabado de sair do forno, a cozinha inundada de cheiros, a erva-doce do folar de Páscoa, o mel quente, o pão quente acabado de comprar… mas dou-me conta que cozinho pouco e a motivação para o fazer também não é a maior. O confinamento por aqui não me tem posto em sobrecarga de actividades.

Enfim, nada resulta!

E de repente!… Sentei-me na minha varanda uma tarde, ao primeiro sol de Primavera, e fechei os olhos. Mais calor do que imaginei. Revi-me em antigas viagens Estrada Nacional abaixo, no calor do Alentejo e da serra Algarvia, sempre mais forte que à saída de Lisboa. E depois via-a perfilar-se no horizonte. A velha conhecida saída de Messines, direcção estrada de Silves, depois Lagoa, Portimão. Sinal que já não faltava muito. Imaginei-me, como fazia sempre, a reduzir a velocidade, a abrir finalmente a janela do carro. E aí, do nada, o meu cérebro enganou-me. Sem qualquer gatilho possível nas proximidades, mandou o meu nariz sentir-se cercado por um enorme cheiro a alfarroba. Como só a saída de Messines num dia de calor me poderia proporcionar. Vinha de sítio nenhum, e não durou mais que alguns segundos. O tempo de abrir os olhos e voltar à realidade. O tempo de perceber que vai ser preciso atacar o que aí vem ancorando-nos naquilo que guardamos de importante para nós.

Mas foi bom. Foi o tempo de um sorriso de saudade.

Autor: TG

12 – O PODER DA RESSUREIÇÃO

Há já muitos anos que a Páscoa era celebrada de maneira diferente. Costumava ser um domingo caloroso, em que a Teresa nos recebia de braços abertos e um sorriso rasgado. Os miúdos corriam entre os quartos e a cozinha com euforia, ao mesmo tempo que se queixavam um do outro às suas mães. Lembro-me se entrar na cozinha e ver um sol tímido a rasgar a janela enquanto o cabrito era assado lentamente. Era lá que conversávamos sobre tudo e sobre nada, sentados à volta da banca preenchida por pão, quiches, patés, queijos ou enchidos. Falávamos sobre o que tinha mudado no último ano, o trabalho ou as relações e pouco importava se havia pouco espaço na cozinha, se o almoço atrasava ou se o cabrito não estava no ponto. Aquele dia era sobretudo sobre o momento em que nos sentávamos na enorme mesa da sala de jantar e aquecíamos o estômago e o coração.

Depois da morte da minha avó, houve um encanto que se perdeu. Passei a deslocar-me a casa dos meus pais ou dos meus tios; o cabrito, muitas vezes encomendado, começou a chegar às horas certas e a divisão das famílias fez com que os mais novos deixassem de marcar presença. Não havia nada de errado com aquele domingo, havia simplesmente um vazio deixado pela ausência das brincadeiras e das correrias dos mais novos mas também pela ausência dela. De um ano para o outro, o almoço do domingo de Páscoa passou a ser um almoço normal de domingo.

Este ano, foi a primeira vez que passei a Páscoa com o Pedro na nossa casa. Comprámos cabrito e camarões, pusemos o vinho na mesa despida, diretamente sobre o mármore, e comemos embalados pelo aroma do crumble de maça que fiz para sobremesa. Limpámos a casa, fizemos videochamadas, estreámo-nos no Tik Tok e brindamos os dois a uma nova realidade alternativa que o tempo carrega com destreza e ironia. A imprevisibilidade torna-nos flexíveis e trouxe à superfície um saudosismo amargo, não necessariamente mau, mas sobretudo diferente. A família provou que não precisa (sempre) do calor humano para existir e a nossa capacidade de adaptação mostrou que é mais forte do que nunca. A vida pode tornar-nos flexíveis, mas é a saudade que nos deixa resilientes.

Autor: IG

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