Este é um diário das vindimas, durante uma semana no Douro. Quando a jornalista e bloguer de viagens/tour líder etc…. vai trabalhar para as vindimas! Este devia ser o título deste diário que vai acompanhar as vindimas, na região duriense, a norte de Portugal, durante mais de uma semana. Estou no Alto Douro Vinhateiro, classificado como Património da Humanidade, na categoria de paisagem cultural, pela UNESCO, mais precisamente na Quinta da Côrte, em Valença do Douro. O que aprendi? Quanto trabalho e paixão existe para se fazer o vinho… Fiquem com o vídeo:
Hoje não escrevo só para viajantes. Hoje, falo para todos aqueles a quem a Covid-19 virou a vida do avesso. Em 2020, o meu emprego como tour líder ficou parado, como podem imaginar. Tinha viagens com grupos todos os meses e fiquei sem nada. A pandemia virou-nos tanto do avesso que fui viver dois meses para o Algarve, mesmo no pico do verão.
E se 2020 me baralhou totalmente os planos, eu decidi dar-lhe a volta também. Para quem me segue sabe que em mim vive uma paixão pelo Alto Douro Vinhateiro. A última vez que lá estive, fui conhecer e escrevi sobre a Quinta da Côrte. E por ter conhecido o projeto de perto – e ter adorado – planeei fazer lá as vindimas. Está agora a concretizar-se esse sonho!
Ora, todos os anos faço um dia de vindimas: um dia de lazer, em quintas que me convidam para viver a experiência. Cortámos as uvas durante uns minutos, fazemos a pisa das uvas, durante meia hora, etc… nada muito a sério. E lembro-me de, em criança, fazer as vindimas na quinta de uns amigos dos meus pais. Era muito divertido!
Mas, este ano, vou mesmo fazer a vindima… até ao “lavar dos cestos”, como se costuma dizer. E vou fazer de tudo um pouco!
Vai ser uma semana para viver tudo o que há para se viver, numa atividade milenar, numa região classificada como Património da UNESCO e que é a mais antiga região demarcada e regulamentada: o Alto Douro Vinhateiro. É mesmo verdade, caros leitores: vou mesmo trabalhar nas vindimas!
E vou também documentar, o meu dia a dia aqui no Viaje Comigo. Ou pelo menos tentar, porque já sei que vou acabar o dia tão cansada que é quase certo que não vou ter sempre vontade de fazer um grande texto. Mas, prometo contar tudo sobre este trabalho, que mais não é do que… produzir os melhores vinhos do mundo (os vinhos do Douro e Porto).
A falta de mão de obra qualificada é sempre um problema, nesta altura, mas eu tenho muita sede de aprender! Meti-me nesta “aventura” porque fiquei sem parte do meu trabalho (mantive os workshops de escrita online e também vou ter tours em Portugal, em breve), mas também porque, como jornalista, gosto de ter as experiências verdadeiras. Esta é um concretizar de um sonho, num ano que tem sido tão difícil para a área do turismo (na verdade tem sido difícil para todas as áreas…).
DIÁRIO DE UMA VINDIMA, 2020 – QUINTA DA CÔRTE – VALENÇA DO DOURO
Confesso-vos… estou a escrever estes textos com algum atraso. O trabalho nas vindimas é muito intenso e temos acabado tardíssimo, para tentar escapar à chuva e trovoada que os meteorologistas anunciaram. Tem sido muito trabalho, mas estou muito feliz por aqui estar. Assim, vou colocando aqui os textos à medida que o trabalho for permitindo.
Até 2012, a Quinta da Côrte só vendia as suas uvas, mas a partir daí – e com o novo e atual proprietário – começaram a produzir o seu próprio vinho. Hoje em dia, são trabalhados 24 hectares de vinha, com 22 parcelas.
Uma semana a trabalhar nas vindimas: Dia 7 na vindima… o adeus e já a saudade!
Depois de, ontem, ter sido um dia de limpeza e de lagarada, o vinho do Porto ficou a fermentar toda a noite e, agora, há que “tirar o lagar”. O que significa? Significa que temos de ir de pás e baldes retirar tudo: os bagos de uvas e tudo o resto que foi espremido para tirarmos o néctar. Não é tarefa fácil, ainda por cima com o cheiro da aguardente a entrar no nosso corpo, mas lá fomos nós limpar o lagar na adega do Vinho do Porto. O que retirámos vai ainda para uma prensa e, aí sim, é retirado todo e qualquer suco ainda existente. Nenhuma gota é desperdiçada!
Na adega nova, das cubas está a sair o novo vinho Branco da Quinta da Côrte. Parte dele vai acabar a fermentação e estagiar, durante seis meses, em barricas de carvalho francês. Depois é necessário lavar todas as cubas de inox. Tudo está sempre limpo e imaculado nas adegas desta quinta.
Hoje, que ainda cá estou, já sinto falta do barulho do trator, das conversas e risadas no meio das vinhas, (até) do barulho da máquina do tapete de seleção, do “vamos lá, malta”, repetido incentivo do Flávio, e até do calor duriense que nos derrete o cérebro. Os primeiros dias foram duros… duríssimos, mas tenho saudades daquele bulício.
Agora o trabalho acalmou e já consegui escrever estes textos do diário da vindima, antes foi impossível. O trabalho é das 7h00 até às 19h30, alguns dias até às 22h00 ou 23h00… só com as paragens para comermos. Foi uma corrida contra o tempo e conseguimos terminar! Hoje, que estou no computador, a escrever-vos este texto, sei que depois de amanhã vou sentir muito a falta do Douro, desta vida e desta gente. Não pensei que fosse possível, mas estou ainda mais apaixonada por esta região!
Obrigada por me terem acolhido (mais uma vez) de forma a sentir-me parte da “família” Quinta da Côrte: Ana, Bruno, Catarina, Flávio, Francisco, Márcio(s), Marta, Paulo, Raquel, Rogério, Sofia, Tânia e Teresa. E também obrigada pelo companheirismo de todo o grupo que acompanhei no trabalho: Ana, Bernardo, Inês, Iva, Luis, Maria, Miguel, Rute, Sofia e Rute – e ainda o pessoal da vinha, Tânia, Sousa e companheiros.
Para o ano quero muito voltar a este lugar!
Dia 6 na vindima
Hoje, foi dia de festa por duas razões, houve uma festa de aniversário e marcámos definitivamente o fim das vindimas. E fazemos mais uma lagarada, para a despedida. Vou ter saudades de estar no Douro, porque aqui sinto-me sempre em casa. E nesta quinta ainda mais!
Uso as palavras do escritor Miguel Torga para, de certa forma, mostrar como a vindima é também parte da vida:
“O que é bonito neste mundo, e anima, é ver que na vindima de cada sonho fica a cepa a sonhar outra aventura.
E que a doçura que não se prova se transfigura noutra doçura muito mais pura e muito mais nova”.
Sabem, já não consigo olhar para as vinhas da mesma forma! Foram dias de aprendizagem muito intensos, mesmo depois de tanto anos a visitar várias quintas vinícolas.
O ter estado no “olho do furacão”, mesmo no meio de alguns dos “dias mais complicados da vindima”, dito pela Marta, responsável pela Quinta da Côrte, faz-me olhar, com outros olhos, para tudo isto em meu redor.
Quanta luta para fazer vinho! Antes de saírem os números de quantos litros de vinho, foram possíveis obter, é já certo que a região duriense, este ano, sofreu bastante com o “escaldão”, ou seja, temperaturas muito elevadas, durante vários dias, que secaram as uvas. Só isso já dá para estragar todo o trabalho, sem falar dos ataques que as vinhas sofrem de bicharada. E sempre que forem comprar um vinho… lembrem-se do trabalho árduo que foi feito, para ele vos chegar às mãos.
A terminar, fiz uma lagarada – de vinho do Porto – com as devidas distâncias, por causa da Covid-19. Entro num dos cinco lagares de pedra, e o cheiro a aguardente quase inebria. Sento-me na beirinha do lagar de granito e faço força para os pés entrarem num bloco compacto de uvas, que agora vamos esmagar.
Primeiro custa, mas depois começa a soltar-se cada vez mais líquido. Que cor bonita! Durante quase duas horas, ao som do acordeão, ou da coluna de música, damos voltas e mais voltas a “cortar” o lagar, ou seja, a esmagar para todos os lados de forma a ficar uniforme o “corte”.
Antigamente, contam-me, os trabalhadores ficavam entre duas a quatro horas no lagar, todos juntos, a cantar, para manter o passo, como se fosse quase uma tropa. “Esquerdo, direito, esquerdo, direito, joelho ao peito”. E, também antigamente, como eram só homens, jogavam à cabra cega, dentro do lagar, de forma a se divertirem enquanto continuam a fazer a pisa a pé.
Uma das músicas que nos acompanhou na última lagarada: “Vinho do Porto”, de Carlos Paião
Primeiro a serra semeada terra a terra
Nas vertentes da promessa
Nas vertentes da promessa
Depois o verde que se ganha ou que se perde
Quando a chuva cai depressa
Quando a chuva cai depressa
E nasce o fruto quantas vezes diminuto
Como as uvas da alegria
Como as uvas da alegria
E na vindima vão as cestas até cima
Com o pão de cada dia
Com o pão de cada dia
Suor do rosto pra pisar e ver o mosto
Nos lagares do bom caminho
Nos lagares do bom caminho
Assim cuidado faz-se o sonho e fermentado
Generoso como o vinho
Generoso como o vinho
E pelo rio vai dourado o nosso brio
Nos rabelos duma vida
Nos rabelos duma vida
E para o mundo vão garrafas cá do fundo
De uma gente envaidecida
De uma gente envaidecida
Vinho do Porto
Vinho de Portugal
E vai à nossa
À nossa beira mar
À beira Porto
À vinho Porto mar
Há-de haver Porto
Para o nosso mar
Vinho do Porto
Vinho de Portugal
E vai à nossa
À nossa beira mar
À beira Porto
À vinho Porto mar
Há-de haver Porto
Para o desconforto
Para o que anda torto
Neste navegar
Por isso há festa não há gente como esta
Quando a vida nos empresta uns foguetes de ilusão
Vem a fanfarra e os míudos, a algazarra
Vai-se o povo que se agarra pra passar a procissão
E são atletas, corredores de bicicletas
E palavras indiscretas na boca de algum rapaz
E as barracas mais os cortes nas casacas
Os conjuntos, as ressacas e outro brinde que se faz
Vinho do Porto vou servi-lo neste cálice
Alicerce da amizade em Portugal
É o conforto de um amor tomado aos tragos
Que trazemos por vontade em Portugal
Se nós quisermos entornar a pequenez
Se nós soubermos ser amigos desta vez
Não há champanhe que nos ganhe
Nem ninguém que nos apanhe
Porque o vinho é português
Vinho do Porto
Vinho de Portugal
E vai à nossa
À nossa beira mar
À beira Porto
À vinho Porto mar
Há-de haver Porto
Para o desconforto
Para o que anda torto
Neste navegar
Vinho do Porto
Vinho de Portugal
E vai à nossa
À nossa beira mar
À beira Porto
À vinho Porto mar
Há-de haver Porto
Para o desconforto
Para o que anda torto
Neste navegar
Dia 5 na vindima
Hoje, ao quinto dia, já não há vindima, já não há seleção, mas há que lavar tudo. Há cubas de inox e lagares cheios para tratar. “Até ao lavar dos cestos é vindima”, diz o ditado popular. Aqui não há cestos, mas há caixotes e baldes para lavar e tudo tem de ser imaculadamente limpo e desinfectado. Até nem parece que há dias (ontem!) tudo isto estava cheio de caixotes a transbordar de uvas.
A experiência do trabalho intenso terminou agora, mas há muitas mais coisas para fazer. Já não se ouve o “tique tique” das tesouras, ou o trabalhar do trator, a recolher os caixotes, mas há as mãos e unhas cobertas de terra, e arranhadas, os pés de cor tinto (das lagaradas do vinho do Porto) e braços arranhados, músculos que doem, costas desalinhadas, etc. Há tudo para nos fazer lembrar quão duro é este trabalho. A cada dia que passa o cansaço vai tomando conta de nós… mas disso tudo eu já estava à espera. Eu sabia que este trabalho é duro!
Mas, eu só fiz cinco dias no campo (vinha para 10, mas terminou mais cedo) e não sei se conseguiria suportar os 15 dias que quase todas as outras pessoas fizeram… talvez o tente para o ano! ;D
Quero deixar uma mensagem de alento a todos aqueles que a Covid-19 virou a vida de pernas para o ar. Sei o que sentem e sei que temos de dar a volta! Decidi meter as mãos ao trabalho, nas vindimas, a desafiar-me e sei que quem aqui está é mesmo porque precisa.
Há gente de todas as idades, mas muita gente nova, que aqui está a trabalhar, que usa este ganho para pagar os quartos das universidades ou as propinas. Gente que faz pela vida e a quem tiro o meu chapéu e bato palmas!
Depois de tanto tempo juntos, a trabalhar, já começa a ser difícil saber em que dia da semana estamos e a quantas andamos.
– Que dia é hoje?
– Aqui é sempre segunda-feira, diz-me Maria.
– Pois, é sempre segunda-feira porque há sempre trabalho para fazer, sublinha a enóloga Marta.
Nos lagares de pedra, espera-se a fermentação, mede-se a densidade e a máquina (o “senhor Vitor”) faz uma parte do trabalho mas, amanhã, há lagarada, com a pisa a pé, para o famoso vinho do Porto da Quinta da Côrte!
Dia 4 na vindima
Ao quarto dia, acordo surpreendida… só me doem as costas e as pernas, quando me baixo para apanhar algo! Eheheh! Qual ginásio, qual quê?! É uma verdadeira coça que apanhámos, a levantar caixotes com uvas, a estar de pé muitas horas, a subir e a descer o terreno, para o corte da uva…
Bem, mas hoje vou contar-vos como uma ameaça de chuva e trovoada nos levou a todos (inclusive a quem estava na seleção de uvas) para a vindima, propriamente dita, ou seja, para o corte e apanha das uvas. A meteorologia é que dita tudo e, hoje, todos éramos poucos para acabar de colher o que faltava.
Fui buscar o meu balde, luvas e tesoura e, antes das 8 horas, já andava atrás do pessoal habitual. Tento seguir a Tânia, que é super rápida no corte dos cachos, mas até o barulho do trabalhar da tesoura dela é mais frenético do que o meu. Demoro muito mais do que eles, é certo, mas hoje consigo ser bastante mais ágil do que no primeiro dia!
A meio da manhã alguém diz:
– O Eduardo foi ali ao manco buscar as uvas.
– O manco?!, pergunto eu?
– Sim, é quando o bardo (uma fila de videiras que fica mais pequeno, e meio isolado, no meio dos socalcos) está sozinho.
Dizem-me isto já a rirmo-nos todos, da minha ignorância. Afinal, não havia nenhuma pessoa manca.
Por volta das 11 horas, fizemos a paragem para o pequeno-almoço e voltámos todos até depois das duas da tarde. Parámos para almoçar e voltámos a subir para um vinhedo bastante inclinado (o balde estava sempre a virar, tal era a inclinação), com um calor quase infernal… Mas, lá fomos, cacho a cacho. A maior luta é com as folhas. Tento abrir caminho, para chegar aos rechonchudos cachos, e tive umas certas lutas com eles… os cachos! Alguns são tão compactos que se enrolam, ora na própria videira, ora no arame que sustenta a vinha. Ando ali às voltas para cortar; dou um clique com a tesoura e… bolas!, cortei uma folha, o cacho ficou ali intacto. Só à segunda, ou à terceira, é que consigo retirá-lo. Isto com a prática vai lá!
Depois de quase 8 horas no corte e transporte das uvas – e o pessoal da vindima estendeu o seu horário – acabámos tudo! Pronto, está feita a vindima de 2020 está feita!
Nós descemos e fomos para a seleção das últimas uvas. Hoje já entra tudo para as cubas de inox e para os lagares. Hoje, já fazemos uma festa. A vindima está feita mas… “Depois da vindima, o trabalho está todo por fazer”. É hoje, também, que tudo começa de novo! Tratar da vinha, podar, etc.
E foi assim que a minha estadia no Douro e nas vindimas, que iria durar 10 dias, ficou reduzida a uma semana. Com este acelerar da vindima, conseguimos colher tudo e depois – do néctar passar para cubas, pipas e para os lagares – vem o engarrafamento, rotulagem e a distribuição.
Hoje, conseguimos ir para casa e descansar ainda melhor! Uma etapa (muito importante) está finalmente concretizada! Mas ainda há muito mais para fazer!
Dia 3 na vindima
Hoje, dormi menos. Depois do dia de ontem, hoje acordámos com a sensação que será um dia mais fácil. Tem de ser! Ehehe! Há mais uvas para colher, para escolher e mais vinho para fazer. É um processo intenso e sinto-me uma privilegiada por poder assistir e acompanhar a isto tudo de perto. Estou a meter, literalmente, as mãos na massa.
Hoje, as uvas no lagar, depois da lagarada de ontem, já borbulham… há uma fermentação no ar!
Ontem foi um dia difícil, mas senti que para os que estão qui no ano inteiro… foi um dia normal! Ou não fosse a região duriense aquela de que se diz que tem “3 meses de inverno e 9 meses de inferno”. Tirando os meses de inverno, todos os outros são difíceis… sobretudo para quem vive da agricultura. Nunca se sabe o tempo que vai fazer. “Lembram-se que, há uns anos, as vindimas eram em outubro? Agora, em agosto, já há quintas que têm de começar a tirar as uvas. Tudo está a mudar”, reflete Paulo, um dos trabalhadores a tempo inteiro da Quinta da Côrte.
Da vez que estive cá a visitar a casa da Quinta da Côrte não consegui assistir a nenhum nascer do dia… agora, todos os dias tenho esse privilégio. O despertador às 6 e pouco já está a tocar e é tão lindo ver o sol a surgir nos montes da direita (para quem está de frente para o rio) e, ao final do dia, a descer nos montes da esquerda.
A manhã vai correndo, entre as escolhas das uvas, enquanto ao longe ouvimos o trator que vai recolhendo os caixotes com as uvas. E nem precisámos de olhar para o relógio para sabermos quando está próxima a primeira paragem, a meio da manhã, por volta das 10 horas… é quando ouvimos a buzina da carrinha do padeiro. Desce toda a ladeira da Quinta da Côrte para trazer algumas dezenas de pães… porque, digo-vos, isto de trabalhar no campo abre muito o apetite! Tomámos um pequeno-almoço a essa hora (claro que há quem coma antes de começar o trabalho às 7h); depois paramos novamente às 13h/13h30 para o almoço e jantamos por volta das 19h30.
De tarde, alguns turistas (que estão alojados na casa da Quinta da Côrte) vão ver a adega do Vinho do Porto e o Luís, que tem um acordeão, dá música a quem quer experimentar a verdadeira lagarada. Detenho-me um minuto a pensar nisto: ninguém que visita uma quinta, nesta altura do ano, imagina a fona que lá vai. É o stress de imaginar que a chuva e a trovoada, previstas para depois de amanhã, possam provocar danos nas culturas… o stress de conseguir acabar tudo no tempo previsto… está tanta coisa em risco.
Mas, pensei de verdade que, a não ser que seja alguém da área dos vinhos, nenhum turista imagina o trabalho que está aqui envolvido. Ou mesmo que o Luís parou uns minutos, de um dia de trabalho intenso, só para lhes dar música durante a lagarada. Sim, porque a vindimas e sempre uma festa!
Pensamento do dia: quão resistente é a uva que sobrevive a temperaturas altíssimas, escondida debaixo da parra, e quão sensível é podendo definhar num só dia com as temperaturas altas.
Ao final do dia, depois de um banho, olho para as unhas e, mesmo a usar luvas para as escolha das uvas, e as luvas da vindimas, fiquei com as unhas pretas e amareladas. “Eu não consigo usar”, diz-me Sofia, já com os braços e mãos todos arranhados do trabalho árduo. Já é uma vitória dizer-vos que consegui, com o protetor solar, evitar um escaldão na vinha. Tentei trabalhar com a camisa, mas estava muito calor. No entanto, o meu chapéu amarelo salvou-me muito.
Hoje, foi um dia muito quente. O mais quente desde que aqui estou. Se Eça de Queiroz passasse agora pelo Douro, diria que “isto está de ananases”, ou seja, que está como se fosse uma autêntica estufa. Posso dizer que um pouco de mim derreteu no Douro, mas hoje diria que cozeu. Estava tanto calor que mesmo o vento, que só de vez em quando surgia, não conseguia atenuar o calor.
Sabem o que noto, cada vez mais? Que realmente quem faz vinho tem de ter uma paixão desmedida por isto e pelo que faz. Tanto trabalho! Já pensaram no preço do vinho e no quanto trabalho o produtor tem? “Isto não é meu, mas até me deu vontade de chorar quando vi as uvas de um talhão queimadas pelo sol e calor, em poucas horas”, confidenciou-me um dos trabalhadores. Há muito amor à camisola nesta equipa. Muito sangue, suor e lágrimas.
Dia 2 na vindima
Há tempos li, algures, “se os teus sonhos não te assustam é porque não são grandes o suficiente”. Penso nisso sempre que olho em meu redor e me perco nesta paisagem de socalcos do Douro. Parte de mim estava com receio deste desafio. Ia eu conseguir acompanhar o ritmo do pessoal que já anda nisto há muito anos? Será que ia aguentar?
Hoje dormi bem. Acordei ao segundo dia sem grandes dores, mas com os pés pintados, da lagarada. Não há banho que tire este tom tinto dos meus calcanhares. Espero depois, quando o trabalho acabar, para fazer um tratamento sério a estes pés e a estas mãos (apesar de usar luvas, não há unha que resista não ficar preta e quebrada).
E ao segundo dia, parece que vivi uma semana… Passo a explicar: hoje o dia de trabalho foi das 7h00 às 23h00. Quem trabalha no campo sabe que há sempre imprevistos. Trabalhar no campo significa ficar à mercê do tempo, se chove, se troveja, se faz muito calor, etc.
Quando, a meio do dia, começaram a chegar os primeiros caixotes de uma parcela em particular, começámos a perceber que as uvas, que há dias estavam belíssimas, já tinham começado a mirrar. Eu consegui ver o desalento do pessoal que trabalha todo o ano na quinta. A partir do momento em que se viu que havia que aproveitar as uvas ao máximo, a seleção começou a ser cada vez mais criteriosa. Só para vos dar uma visão geral do problema, ficámos todos (cerca de 20 pessoas) a escolher uvas até às 11 da noite.
Mas, volto ao início do meu dia: são 7 da manhã e pedi para ir fazer companhia ao pessoal que estava no corte e colheita das uvas. Pus o meu chapéu, protetor solar, camisa e botas, para andar no meio da terra, e lá fui eu munida do kit de vindima: balde, tesoura e luvas. Benditas luvas! Estive cerca de duas horas e meia a andar atrás do pessoal. Enquanto eles enchiam dois baldes, eu ainda ia a meio do meu.
Mas faz parte, não é? É aprendizagem ao lado de pessoas que fazem isto todos os dias, todos os anos. “Andamos aqui o ano todo”, solta uma das senhoras que está ao meu lado, quando meto conversa com ela. “Depois da vindima, o trabalho está todo por fazer”, acrescenta outra, esta frase que só agora entendo bem o que ela quer dizer.
A vindima é uma parte da produção do vinho, a que implica cortar e colher os cachos, mas durante todo o ano é preciso podar e limpar a vinha, fazer tratamentos (aqui, na Quinta da Côrte, colocam inclusive protetor solar nas uvas) tudo para que as vinhas sejam bem tratadas e dêem uvas boas.
Gostei de andar com eles na vindima. É quase uma terapia, andar na vinha a cortar as uvas, com o silêncio apenas quebrado pela cantoria de algumas senhoras e alguma conversa – sobre a segunda vaga da Covid-19, claro – e, estar ali no meio, apreciar a paisagem é das melhores sensações.
Se dá cabo do corpo? Dá! Andar agachado quase todo o tempo – os cachos nascem “escondidos” nas folhas e é preciso fazer agachamentos a maior parte das vezes -… já sei que amanhã me vão doer as pernas, portanto, não me posso esquecer de fazer os alongamentos.
Como chegam as uvas ao tapete de seleção? Nós cortámos e colocámos nos baldes, que andam sempre ao nosso lado; depois, estão espalhados uns caixotes pelo chão onde despejámos os nossos baldes quando estão cheios. Esqueçam a ideia romântica dos cestos antigos, os caixotes são mais higiénicos e podem ser colocados uns em cima dos outros para melhor arrumação.
Os caixotes vão sendo colocados estrategicamente nos socalcos para que possamos descarregar os baldes e, depois, há um pequeno trator que passa por entre os vinhedos a fazer a recolha dos caixotes. De seguida, o trator leva-os para a carrinha e daí vão para as nossas mãos, que estamos na seleção das uvas. São caixotes que podem pesar cerca de 20 quilos… Pesadito, não é? Eu nunca consigo pegar num sozinha! Nem se mexe! Sou uma bocadinho fraquinha de braços.
Depois da experiência das vindimas – e de aproveitar para filmar e fotografar, porque também faz parte do meu trabalho aqui – voltei para a mesa/tapete de seleção. A Quinta da Côrte tem duas adegas: uma moderna, com as cubas de inox e toda uma tecnologia que permite fazer os vinhos apenas por gravidade, ou seja, as uvas caem de cima, e são espremidas somente com o seu próprio peso; depois, na cuba, o líquido sai e torna a entrar. Inspiro… cheira bem este vinho! E na outra adega mais tradicional, estão os lagares de pedra para fazerem o vinho do Porto. É aqui que estão estão também as pipas e tonéis, onde estagiam os vinhos do Porto.
A seguir a uma escolha para o vinho tranquilo (o vinho de mesa), descemos para a seleção de uvas para o vinho do Porto. Este tapete “cospe” o ramo dos cachos. Ramo, pé de uva, pé da vinha, engaço, canganho… existem várias formas de o dizer, até dependendo da região. Também há diferentes nomes para Vinho do Porto, como vinho tratado, vinho generoso ou vinho fino. As uvas seguem para os lagares de pedra e são pisadas (pelo “senhor Vítor” (a tal máquina que vos falei no Dia 1) e por nós) e o mosto ainda vai para uma prensa, saindo daí mais líquido, aka vinho!
São 11 da noite e parámos a seleção das uvas, quase bago a bago, em alguns cachos… vou-me embora e ainda fica gente a lavar tudo e a preparar tudo para o dia seguinte. Que estafa!
Dia 1 na vindima
Apesar de se chamar “vindima” simplesmente ao ato de apanhar/colher as uvas, todos sabemos que quando dizemos que vamos “trabalhar nas vindimas”, há muito mais por detrás disso… certo? Eu sabia, mas muito devido à experiência que já vos contei acima (das quintas que me convidam para um dia nas vindimas), mas não imaginava que havia tanto mais trabalho por detrás! Isso só mesmo a experiência é que nos consegue mostrar.
Então, quando cheguei para o meu primeiro dia na Quinta da Corte, já o corte da uva (a vindima propriamente dita) tinha começado há uns dias. Por isso, comecei pela seleção das uvas, algo que é muito importante nesta quinta. Nesse processo, são escolhidas as melhores uvas com o intuito de fazer… o melhor vinho, claro.
Ora, muita gente poderá imaginar que é uma máquina que faz esse trabalho… mas não! É tudo feito manualmente, num tapete que vai andando e as uvas vão passando pela vistoria, ou seja, pelos nossos olhos e mãos, de forma a selecionarmos as melhores. São horas e horas nisto.
Diz-me a Raquel, que já anda nisto das vindimas há muito tempo: “Isto é como na depilação das mulheres, há a gilete e aqui fazemos a pinça”. Rimo-nos, mas na verdade é mesmo esse pormenor, da escolha das uvas, que faz com que os vinhos desta quinta sejam cada vez mais premiados. Ou seja, em vez de “pêlo a pêlo” fazemos quase uva a uva, quando os cachos não são os “melhores”. Explicam-me que as diferenças de temperatura estragam muito as uvas e alguns bagos ficam completamente desidratados e secos. “Quando não chove, a vinha não consegue ir buscar a água à terra, e é tanta a secura, com temperaturas muito altas, que vai buscá-la à uva”, explica-me Paulo, um dos trabalhadores da Quinta da Côrte.
Temos de retirar os cachos menos bons. No início, não imaginam o quanto me custava tirar cachos inteiros do tapete, mas depois percebi que todas as uvas vão fazer vinho. A diferença é que, no tapete, selecionámos por castas para os vinhos DOC Douro (ou, como alguns dizem, “vinhos tranquilos”), mas depois todas as uvas têm uma segunda oportunidade para a produção do vinho do Porto – às quais se juntam as vinhas velhas.
Mas, a seleção das uvas não é tudo! Pelo meio, carregam-se e descarregam-se dezenas de caixotes. Penso que, ao final do dia, serão algumas centenas de caixotes que passam pelas nossas mãos. Ao final do dia o cansaço é muito e o corpo sente-o. O trabalho de campo é muito duro, bem sei. Mas uma coisa é saber e outra é senti-lo. Mesmo na seleção das uvas, que parece algo mais calmo há o fator e estarmos muito tempo de pé, no mesmo sítio, e quando o tapete pára, parece que os continuámos a ver andar. “Já estive a trabalhar no tapete e não consigo”, confessa-me Tânia, que anda a vindimar nesta quinta, “porque enjoo sempre!”. Prefere andar a cortar os cachos. “Sempre andamos de um lado para o outro”, atira uma senhora do outro lado da vinha, enquanto ouço a tesoura a cortar os cachos, mas não lhe consigo ver a cara.
O tapete leva as uvas boas, que depois são mais uma vez seleccionadas – são retirados os bagos secos – e, por gravidade, o vinho desce para a adega, para dentro das cubas de inox. Para o vinho do Porto, o processo é diferente, porque é feito em lagar de pedra, e apesar de contar com uma máquina (a que chamam “senhor Vitor”, que amassa as uvas), o vinho do Porto, na Quinta da Côrte, é feito sempre com uma pisa a pé. E eu tenho lá a minha marca. ou seja, os meus pés andaram a pisar as uvas de vinhos que vocês vão beber.
E, no final do meu primeiro dia, fui fazer uma lagarada! Fui vestir os calções e depois dos pés (bem) lavados entrei no tanque de pedra para pisar as uvas. Ao final do dia (que começa quase sempre às 7h00 e dura até às 19h30 – por vezes, saímos mais cedo), é preciso lavar tudo ao pormenor. Por causa do sumo da uva, tudo fica agarrado, e todas as máquinas são limpas e desinfetadas… Há cascas de uva e grainhas em todo o lado!
Ao longo do dia de trabalho, ao andar para cima e para baixo (é como ir ao ginásio!), pár0 diversas vezes, na ladeira da quinta, para admirar a paisagem à minha volta. Que lindo que é o Vale do Douro!
À noite, enquanto vos escrevo este texto, faço uns alongamentos nos braços, costas e pernas, por causa do carregar os caixotes e estar de pé muitas horas seguidas. E, deitada na cama, acho que ainda vejo o tapete a andar! 😀 Vou descansar e preparar-me para mais um dia na vindima! Depois de os últimos seis meses terem sido muito atípicos, finalmente estou a fazer algo que verdadeiramente me desafia. E não houve um minuto em que sentisse que estava fora do meu mundo. Adoro o Douro. Amanhã há mais!