José Saramago disse que “Alpedrinha era secreta” e outros chamaram-lhe a “Sintra da Beira”* pelas visitas de nobres, pelos solares e por estar virada para o turismo e lazer. A Vila de Alpedrinha é também ligada ao reputado Cardeal D. Jorge da Costa e é o reduto de uma arte de marcenaria: os embutidos. Escondida na encosta sul da Serra da Gardunha, a cerca de 550 metros de altitude, Alpedrinha tem pouco mais de mil habitantes, mas conta com uma História que a põe no centro do mapa das Beiras. A transumância é, por aqui, algo marcante e, todos os anos, é-lhe dedicada um festival que enche as ruas desta pitoresca localidade beirã – visitei a vila quando fiquei alojada Casas de Alpedrinha.
Nos seus tempos áureos, Alpedrinha que era detentora de uma das maiores piscinas das Beira, teve também o primeiro teatro da região, e tinha uma estalagem e casas de turismo rural para quem queria vir passar as férias junto da serra da Gardunha – ou dar mergulhos na piscina que conta com água vinda das nascentes da serra – a piscina é ainda das Casas de Alpedrinha.
A primeira paragem desta visita deve ser feita no Posto de Turismo. Apesar de Alpedrinha não ser grande, há sempre dicas que não escampam aos guias locais. A vila fica perto de duas Aldeias Históricas de Portugal, como Monsanto (que se vê do centro da vila) e Castelo Novo, mas outras também estão por aqui a menos de uma hora de distância como Sortelha e Belmonte.
É a calçada romana que nos indica a sua antiguidade – era esta a estrada que ligava ao Fundão e por onde se dava a transumância até à Serra da Estrela. Percorri pela serra acima, partindo junto ao Palácio do Picadeiro – edifício bonito e local de visita obrigatória. A calçada segue a estrada por baixo da A23, para aos poucos, subindo de forma calma e segura, irmo-nos afastando dos barulho dos carros que daí advém. As pedras graníticas fazem o percurso na Gardunha e vamos subindo até descobrirmos a vista espraiada para o Fundão e com a Serra da Estrela ao fundo, com a Cova da Beira à nossa frente.
Se o Palácio do Picadeiro é, por si só, um local de visita obrigatória pela sua história e espólio – datado do século XVIII – é também aí que está guardado um dos maiores tesouros locais com os embutidos.
É uma tradição local, ainda mantida por um marceneiro, que decora de forma primorosa móveis – saiba tudo aqui.
Abaixo do Palácio do Picadeiro, está o majestoso Chafariz D. João V, uma fonte de três bicas Que na verdade são seis), mandada construir por D. João V (1714), e dedicada a mulheres, dizem os antigos. E, segundo reza a lenda, a bica da esquerda era para as bruxas, a do meio para as solteiras e a da direita para as casadas. Só por via das dúvidas, usei a da esquerda, que me pareceu mais apropriada. Vivesse eu naquele tempo e certamente era considerada uma bruxa, com tudo o que estaria implicado.
Descobri Alpedrinha ao ficar no alojamento das Casas de Alpedrinha. Fazia caminhadas diárias do alojamento até ao centro da vila. Pelo caminho, assomam-se as torres sineiras da Igreja Matriz, ao longe, a denunciar que ali vive gente e que já foi um importante local ligado ao catolicismo, ou não fosse casa do Cardeal D. Jorge da Costa, também conhecido por Cardeal de Alpedrinha ou por Cardeal de Portugal, que teve uma grande influência no Tratado de Tordesilhas, no Vaticano, e criou a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Igreja da Misericórdia que fica ao lado da Estátua do Cardeal – Vila de Alpedrinha – Fundão – Portugal © Viaje Comigo
É raro encontrar ruas de Alpedrinha em que não se ouça a água, que vem da serra a correr. Seja em fontes, tanques, ou mesmo nos caminhos subterrâneos que levam as águas, por gravidade, para os terrenos no sopé da serra. Por ter sido sempre um terreno muito fértil – e bem mais fértil do que o lado do Fundão – onde nunca faltou água, Alpedrinha foi escolhida para ser casa de muita gente, com dinheiro, para aqui viver.
Não estranhe, por isso, ao ver vários solares, casas senhoriais, ou antigos palácios, alguns ao abandono ou transformados em edifícios de serviços. Alpedrinha foi sede de concelho entre 1202 e 1885 e chegou a ter mais de 7 mil habitantes em meados do século XIX.
Casas senhoriais: Casa da Comenda; Palácio do Picadeiro; Casa das Senhoras Mendes ou Solar dos Pancas; Casa do Pátio ou Solar dos Britos; Casa do Barreiro; Casas do Cardeal; Casa da Câmara (antigos Paços do Concelho).
Foi aqui que surgiu o primeiro teatro desta área geográfica, aliás o primeiro do distrito de Castelo Branco. O Teatro Clube de Alpedrinha foi fundado em 1839, o edifício ainda existe e é hoje usado pela Companhia Teatro Clube de Alpedrinha. Foi conhecido como a Casa da Ópera e também como Teatro do Calvário. Tinha 22 camarotes e 200 lugares na plateia, o que o fazia, de facto, e para a época, um amplo local de espetáculos teatrais. Atualmente, o Teatro Clube de Alpedrinha é uma associação sem fins lucrativos, levada a cano pelos seus associados.
Atravessada a meio pela EN 18, Alpedrinha era também ponto de passagem até construirem a A23. Desviou o trânsito maior, mas também tirou as paragens habituais que as pessoas faziam em viagem. Tirou o trânsito, mas cortou a serra para fazer a A23, e cortou dois montes para os túneis da Gardunha… A sua importância é também comprovada pela estação de comboios de Alpedrinha que ainda continua funcional e a receber comboios na Linha da Beira Baixa.
Também fustigada pelas Invasões francesas é na passagem pela Igreja Matriz e mesmo em frente à que foi a casa do Cardeal que está uma lista das pessoas que foram mortas nesses tempos sanguinários em que as tropas de Napoleão avançavam no território português.
No mês de setembro (na terceira semana), o Chocalhos – Festival dos Caminhos da Transumância toma conta das ruas de Alpedrinha e dos caminhos da serra da Gardunha. O que assinala? A passagem dos rebanhos serranos pelas ruas a caminho de Idanha. O programa tem concertos, oficinas, exposições, conversas, mostras de artesanato e produtos da terra, mas a mais esperada é a caminhada com o rebanho pela serra acima (acontece no domingo de manhã daquele fim de semana). Outra festa que traz muita gente a Alpedrinha é a Festa do Anjo da Guarda, no segundo domingo de agosto.
“A cena é muda e breve:
Num lameiro
Um cordeiro
A pastar ao de leve;
Embevecida,
A mãe ovelha deixa de remoer;
E a vida
Pára também, a ver”.
“Instante”, de Miguel Torga in Diário, III
Em frente ao Teatro de Alpedrinha está uma casa que diz: “Nesta Casa viveu, trabalhou e morreu, José Joaquim dos Santos Pinto que por alvará, concedido por El Rei D. Carlos I, a 10 de julho de 1895, lhe valeu o título de Marceneiro entalhador da Casa Real”.
Sabem o que são móveis feitos com a técnica dos embutidos? Descobri que a Vila de Alpedrinha é o reduto português desta arte marceneira, que conquistou os reis. Começo por confessar a minha ignorância e dizer-vos que não sabia (não fazia mesmo ideia!) o que eram os móveis embutidos. Também não sabia que era algo muito importante na Vila de Alpedrinha, no concelho do Fundão – no centro de Portugal – e que era uma técnica que, infelizmente, tende a desaparecer, pois já poucos se dedicam a ela. Esta técnica de decoração de mobiliário marcou um estilo, durante muito tempo… num tempo em que os móveis contavam histórias. Hoje, é na Vila de Alpedrinha que se encontram os exemplos desse mobiliário. Leiam mais, aqui.
O escritor José Saramago disse: (em Portugal) “Não faltam povoações escondidas mas esta Alpedrinha é secreta”. E, de facto, ainda esconde muito na sua riqueza histórica.
Subindo a vila, a partir do posto de turismo, sobe a rua da EN18 para chegar à porta do Teatro e vira à esquerda para entrar pelos quelhas de Alpedrinha. Vai ter ao largo onde está a Casa de D. Jorge da Costa, Cardeal de Alpedrinha, num edifício seiscentista onde está o brasão. Daqui estará de frente para uma típica casa rural das beiras e para a Igreja Matriz – aqui está também afixado um Memorial às Vítimas das Invasões Francesas. Se continuar a subir vai encontrar o majestoso Chafariz D. João V e, mais acima, subindo a ladeira pela calçada romana, o bonito Palácio do Picadeiro.
Continuando o passeio pelo centro de Alpedrinha vai encontrar diversas casas antigas e solares. É o caso da Casa da Comenda, o Solar dos Pancas ou a Casa do Páteo… todos bonitos exemplos da época de ouro de Alpedrinha.
No centro da vila, junto das lojas e das bombas de gasolina uma enorme pintura, de street art, na parede faz uma homenagem aos pastores e à transumância
O QUE VISITAR EM ALPEDRINHA
– Capela de São Sebastião
Fica próxima do Palácio do Picadeiro, acima, quem faz a estrada romana a subir a serra da Gardunha. Deverá ter sido construída em meados do século XVIII e reconstruída em 1933.
– Capela de Santo António
– Capela do Espírito Santo
– Capela do Menino Deus
– Capela do Leão
Também conhecida como Capela de Santa Catarina, está junto da Fonte do Leão (a estátua já gasta torna difícil a tarefa de ver ali um leão, de pedra). No pórtico tem a imagem de Santa Catarina
– Capela do Senhor da Oliveira
– Chafariz do Espírito Santo
– Chafariz Novo
– Chafariz D. João V
Deverá ter sido construída em 1714 a mando de D. João V. Com três bicas, diz a lenda local que a bica da esquerda era para as bruxas, a do meio para as solteiras e a da direita para as casadas.
– Fonte do Leão
Fica junto à Capela do Leão, também apelidada de Capela de Santa Catarina, e é tida como uma das mais antigas fontes de Alpedrinha. Dizem que na pedra está a imagem de um leão, embora seja muito difícil com o desgaste do granito ver que tipo de animal será… conseguem ver um leão?
– Igreja da Misericórdia
Construída no século XVII (possivelmente à volta de 1626) e com reconstrução em 1788. Na entrada, no nicho, está a imagem da Nossa Senhora do Socorro, padroeira do hospital da Misericórdia.
– Igreja Matriz de Alpedrinha
Construída primordialmente no século XII, deverá ter tido várias remodelações, tem no órgão de tubos (do século XVIII) o elemento de destaque, assim como os seus sete altares.
– Palácio do Picadeiro
É um dos mais emblemáticos edifícios desta vila. Deverá ter sido construído em finais do século XVIII e inícios do século XIX, sendo que serviu de picadeiro no início. Atualmente serve de espaço museológico guardados os tradicionais embutidos, muitos característicos da marcenaria de Alpedrinha. Pertenceu à família Taborda – conhecida como Casa Quadrada – e posteriormente foi residência dos Jesuítas. O brasão da frente é de Francisco Sarafana Correia da Silva (um reputado magistrado) que nasceu em Alpedrinha em 1738 e ali faleceu em 1803.Já foi Tribunal da Comarca, Oficina Tipográfica e hospital da Misericórdia. A vista da varanda do palácio é imperdível.
– Pelourinho de Alpedrinha
Decorado com cabeças de serpente o pelourinho de Alpedrinha tem três degraus o que mostra a sua importância em tempos idos. Foi erguido em 1675, aquando da elevação de Alpedrinha a sede de concelho por D. Pedro.
– Museu da Música
É a casa da família Osório (rua Feliciano Mendes de Matos)
– Museu Etnográfico
Fica no Largo do Pelourinho e é gerido pela Liga dos Amigos de Alpedrinha, no edifício dos Antigos Paços do Concelho.
Está no Posto de Turismo de Alpedrinha uma imagem de São Jorge – Padroeiro do Município de Alpedrinha – datada do século XVIII, feita em madeira policromada.
“A imagem de S. Jorge foi mandada fazer pelo Município de Alpedrinha no Século XVIII. Segundo a tradição, a escolha de S. Jorge para patrono prende-se à intenção de homenagear onomasticamente o ilustre alpetriniense que foi o Cardeal D. Jorge da Costa (1406-1508).
Esta imagem, para alem do erudito lavor que assistiu à sua execução, apresenta a curiosidade de dispor de sistema de articulação de madeira e ferro que, juntamente com a postura equestre, permitiam que fosse colocado no dorso de um cavalo e tomar parte de vários atos públicos, designadamente procissões e outras solenidades de Alpedrinha.
Aquando da extinção deste município, por decreto de 24 de outubro de 1855, a imagem foi levada para o Fundão e colocada no Salão Nobre dos Paços do Concelho.
Contudo, tal como acontecera com Alpedrinha, a imagem saía pelos menos uma vez por ano às ruas da sede de concelho. Contra o escritor José Germano da Cunha, no ano de 1892 (ou seja, mais de trinta anos depois da ida da imagem para o Fundão) que, na procissão do Corpus Christi – uma das solenidades mais apetecidas do território nacional e que remonta ao século XIII – o S. Jorge abrir sempre o piedoso cortejo, montando no respetivo cavalo e a ladeá-lo um cavaleiro com armadura e o pajem de casaca e chapéu alto, mais um rapaz trajando de anjo.
Todavia a imagem de S.. Jorge sempre teve uma profunda carga simbólica para os Alpetrinienses, que desde sempre lamentaram a sua saída da vila.
Restitui-se agora às origens a imagem de S. Jorge, passados 157 anos sobre a data da sua partida”.*
*informação junto da imagem, que está no Posto de Turismo
Lenda: diz-se que quando levaram a estátua, a imagem voltou-se para Alpedrinha, dando uma leitura de que não queria sair deste local. E, agora, ao fim de tanto tempo, voltou a Alpedrinha.
*Conhecida como Sintra da Beira: este “cognome” veio de D. Leonor de Almeida (1750-1839), a marquesa de Alorna, quando ali esteve, quiçá em busca de recordações familiares.